domingo, 8 de dezembro de 2013

A vida de vitórias de Lucia Bezerra!

Quem vê a bagunça na casa simples de Lucia Bezerra, cercada de crianças peraltas, não imagina que a moradora do Rio das Pedras, em Jacarepaguá, tem muito para se orgulhar. Nascida na cidade de Ararendá, no Ceará, em 1957, a ex-prostituta nunca imaginou que teria uma vida feliz e sem – tanto – sofrimento, como a que vive hoje.

Ansiosa, ela me lembra da entrevista que havíamos marcado. Devolve o filho da vizinha, que estava dormindo em seu colo, e se senta sobre a velha cadeira branca de plástico, que na verdade, é do bar do vizinho. Lucia reclama do forró alto que ecoa no local, faz uma careta, levanta e vai até a porta de outra vizinha, trazendo a cadeira arranhada consigo.
Mulher de família e vencedora.
“Morava com a minha mãe e meus irmãos numa casinha de barro. Lembro que, quando chovia, o barro ia se desfazendo e a gente mesmo levantava na hora”, declara, ansiosa na expressão e calma na voz, enquanto gesticula, como se estivesse lá, nos anos 60, reconstruindo sua casa durante a chuva. Filha de Dona Maria José, uma senhora baixinha e bondosa que trabalhava na roça para sustentar dois filhos, Lucia – que nunca foi alfabetizada – começou a trabalhar aos oito anos de idade, junto com sua mãe. “Eu nunca conheci meu pai, então trabalhei desde novinha no roçado. E como a gente dependia da época pra ter os legumes, tinha estação que não dava nada, aí nós ficávamos sem dinheiro”, explica.

Para piorar a situação, a mãe de Lucia veio a falecer quando esta tinha apenas 10 anos. “Foi aí que tudo piorou”, fala, com a voz tímida. Lucia passou a morar com suas tias, mas não tinha a vida que queria. Com 13 anos, ela resolveu se encontrar com homem que a levou para trabalhar em um bordel. “Eu não aguentava mais passar fome, comer pouco. No bordel, o dinheiro era rápido, minha vida era farta”, justifica sua escolha pelo trabalho.

Lucia avalia sua vida na prostituição como positiva. “Conheci muitas pessoas lá. Até já encontrei gente de lá aqui no Rio das Pedras!”, revela. A região de Rio das Pedras, assim como a Rocinha, é famosa por ser uma das localidades do Rio de Janeiro com mais nordestinos. Apesar de rápido, Lucia ressalta que seu trabalho foi muito sofrido. “Meu primeiro cliente foi um velho horrível. Consegui fazer tudinho e nem chorei depois, porque tava com dinheiro. Nos meus 12 anos de cabaré, tomei muito porre pra fazer os programas”, diz. Lucia também conta que era agredida por muitos clientes e não fazia nada, porque “era muito boba naquela época”. 

Não havia muitas válvulas de escape para as garotas de programa do interior do Ceará. A senhora de 56 anos revela que as prostitutas não usavam drogas, porque ainda não era popular no Nordeste, ao menos naquela região. Ela se orgulha de dizer que nunca usou droga alguma, a não ser álcool e cigarro. E foi entre uma tragada e outra que ela encontrou o grande amor de sua vida. “Assim que tive a Rosa (sua filha), conheci o Zé Antônio. Eu tava de resguardo quando fui comprar um cigarro na budega e ele me pagou um maço inteiro.” Mas não foi dessa vez que eles tiveram a noite de amor: “Nós conversamos, e eu disse que não podia dormir com ele, porque tava de resguardo. Mas ele disse que queria só dormir. E depois ele dormiu de novo, mas não quis nada. Depois ele veio e me deixou muito dinheiro... Ele tinha vindo de férias do Rio de Janeiro!”, sorri.
56 anos de muito esforço.
Como Zé Antônio tinha apenas um mês de férias, ele fez uma oferta a Lucia, a convidando para vir ao Rio. “Eu disse que só aceitava se fosse pra levar o bebê junto. Então ele disse que viajaria e me mandaria as passagens depois”, completa. Dito e feito: muitos meses depois, Lucia veio, numa viagem de três dias sem comida, e deixou Rosinha com uma amiga no Ceará. Ao chegar à rodoviária, ela não se encontrou com Zé Antônio – ele não foi buscá-la. A jovem foi parar na Rocinha, na casa de uma conhecida que também havia vindo do Ceará. Depois de se encontrar com um amigo de Zé Antônio, Lucia combinou tudo para a chegada de sua filha, que veio trazida pela sua amiga cearense, cerca de 15 dias depois.

Sem dificuldades em se comunicar, Lucia logo arrumou um emprego como doméstica. Após um ano morando com Zé Antônio na Rocinha, o casal resolve se mudar para o Rio das Pedras, onde constrói uma casa e um bar. “Ele era muito trabalhador, e tinha a mente certa, por isso foi uma ótima fase”, define Lucia, que não vive mais com Zé Antônio hoje. Na época, ela tinha um bar, lembrado até hoje por seus vizinhos mais antigos.

“A Rosinha estudou, Zé Antônio era muito bom pra ela. Ele foi um ótimo pai pra ela, porque pai é quem cria, né... Ela que não soube aproveitar”, julga as atitudes da filha, com o rosto franzido. Apesar da rebeldia de Rosa, que engravidou e abortou aos 14 anos, Lucia diz que se sentiu culpada por seus erros, pois lembra que a deixara, por vezes, sem comer. “Eu trabalhava, e acabei deixando ela de lado. Também vivia bêbada, depois que o Zé me deixou. Mas depois ela foi morar com o Josias e tiveram a Isadora”, recorda de sua primeira neta, hoje com 14 anos, que passa pela rua correndo em direção a uma lanchonete.
A filha Rosa, o neto mais novo e a neta mais velha.
Lucia diz que aproveitou bastante a sua vida de casada. Com a despensa sempre cheia, ela até pedia mais dinheiro do que precisava ao marido, que atendia a seus pedidos. Com o tempo, a relação se desgastou e ele se apaixonou por outra mulher, com quem vive hoje, em Caxias. “Mesmo depois de 18 anos separados, o Zé Antônio foi o homem da minha vida”, suspira. 

Mais três netos – e três maridos – vieram na vida da filha. “Ih, mas a minha mãe tem história pra contar”, gargalha a extravagante Rosa. Lucia acaba cuidando bastante de Eduarda, 9, Miguel, 6, e Eduardo, 3. Miguel, o mais teimoso, bate em um menino, que vem se queixar com Lucia. Aos berros, ela manda o neto se aquietar, se não quiser apanhar. Os olhos de Miguel deixam transparecer o medo de uma possível surra. Ele, enfim, se acalma.

Apesar de ter muito trabalho com os netos, Lucia diz que está feliz. Após um período desempregada, hoje ela leva e busca crianças em algumas escolas do bairro, e comemora a vida no Rio de Janeiro. “Não voltaria pro Nordeste, não. Lá eu sofri muito, sabe... A melhor coisa que eu fiz foi vir pra cá. Aqui é só trabalhar para não passar fome”, sorri.

Nem mesmo as constantes brigas entre sua filha e seu genro André, lhe tiram a alegria. Recentemente, os vizinhos se depararam com um “show” dado pelos dois, que brigaram por dinheiro. Lucia se alterou, chamou a policia para o genro, que quebrou um relógio seu, no valor de 500 reais. “O policial me falou que não é mais pra eu me meter, porque depois eles se resolvem. É verdade mesmo, porque com os quatro maridos da Rosa foi assim, tudo brigando. Tenho que ficar boa pra cuidar dos meus netos.” Isadora, a mais velha, diz que ama mais a sua avó do que sua mãe. Nas discussões com sua mãe, as vezes por usar suas roupas, Isadora lembra uma irmã mais nova de Rosa, e Lucia atua como a mãe da família.
Momento em família.
Há quatros anos trabalhando com as crianças, Lucia está pagando sua aposentadoria e quer chegar logo aos sessenta. “Quero me aposentar logo, poder descansar mais... A Rosa vai continuar me ajudando e, daqui a pouco, a Isadora, né.” A ajuda – não só financeira – da filha também tem o seu valor. “Meu aniversário foi muito feliz, com duas festas que a Rosa inventou! Tava até estranhando, não ter nenhuma briga com o André”, comenta, após a confusão entre o casal.

Enquanto a aposentadoria não chega, Lucia continua com sua vida imperfeita, mas feliz. A casa bagunçada pelos três netos menores, a cozinha farta, as noites de descanso em frente à televisão ou ouvindo Amado Batista, as manhãs e tardes de trabalho, comandando uma trupe de crianças até as escolas de Rio das Pedras, as festas de aniversário de seus vários netos... Essa é a sua vida. Tudo isso faz bem à negra batalhadora, que vence a cada dia e é uma verdadeira chefa de família. Lucia Bezerra da Silva é uma em meio às várias brasileiras que estão no batente, vencendo os obstáculos do cotidiano.

Com o calor escaldante de uma sexta-feira de dezembro no Rio de Janeiro, onde os termômetros estão na casa dos 30°C, mesmo sendo de manhã, Lucia surge com sua mini gangue. Cabelos recém-lavados e penteados, blusas passadas e sapatos limpos. Assim seguem as crianças, muito bem arrumadas, diferentes do resto do dia, quando estão correndo pela rua – em grande parte das vezes – descalças. E lá vai a vencedora, conduzindo seus pequenos retirantes ao mundo dos estudos, ajudando-os e se ajudando.

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